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1 história por dia


Esta rapariga vai todos os dias ao café ao mesmo café e quase à mesma hora.
Pede o seu café ao balcão, um copo de água e senta-se à mesa, enquanto olha para o programa que passa na televisão, sobre receitas de cozinha, que dá todos os dias à mesma hora.
Enquanto olha para o programa desinteressadamente, os seus olhos vão parar mais interessados sobre aqueles que entram e saem do café, ela observa atentamente sem dar nas vistas, nem causar incómodo. Os seus olhos poisam mas não julgam.
Também olha para as duas pessoas que estão atrás do balcão a atenderem. A senhora mais velha será a dona do café ou se calhar a mulher do dono do café que hoje não se encontra, se calhar está de folga, ou de férias, ou foi ao supermercado, e uma rapariga nova que deverá ser a sua empregada.
Ela gosta de as observar, porque estas duas pessoas são engraçadas, causam-lhe uma certa curiosidade na relação que têm uma com a outra. Existe entre elas um afecto quase que familiar, um carinho, que mesmo não sendo da mesma família, parecem mãe e filha, na sua cumplicidade.
Também as acha engraçadas por uma outra razão, estas duas pessoas atrás do balcão têm um comportamento quase, ou se não mesmo, indiferente a quem entra e sai daquele café, parecem estar em casa, fazendo as suas vidas; elas almoçam, elas conversam, riem, a mais nova canta em voz bem alta, a mais nova é a mais expressiva, e o factor secundário ou quem vem em último lugar, são os clientes, que por acaso vão àquela espécie de casa tomar café e comer um bolo ou um croissant, e naquele momento quando se dirigem a elas para se fazer o pedido, por alguns segundos elas rompem esta quarta parede para atenderem, darem atenção mas só por alguns segundos, no segundo a seguir já fecharam a janela, a porta ou reconstruiram a parede e já entraram novamente na sua história.
E a rapariga que vai todos os dias ao mesmo café, à mesma hora, volta a ficar sozinha, a assistir ao filme projectado na parede invisível atrás do balcão, a observar estas duas pessoas e todas aquelas histórias que passam, entram e saem daquele café à mesma hora.
Depois de ter bebido o café muito devagar, que já tinha pago ao início, levanta-se e vai para casa, até ao dia seguinte que sairá, à mesma hora, para ir tomar café.

Texto: Clara Marchana
Fotografia: "Simone de Beauvoir, Café de Flore" (1944), Brassaï, pseudónimo de Gyula Halász, fotógrafo húngaro (1899-1984)

Comentários

Ana Carvalho disse…
olá! muito expressivo, aliás como nos costumas brindar!
é uma história por dia?
Beijo grande
Clara Sofia disse…
ahhahhah! Vamos ver se se encontra uma história por dia! A idéia é essa 1 história por dia:)
Muito obrigada Arkana.

Muitos beijinhos para ti*
Quimera disse…
Gostei muito!
A rapariga vai contar-nos as histórias que observa no café? :)
Beijinho

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