Amuada

 


Quero ler mais.

Não quero estar dependente de ecrãs, nem de notificações, nem mensagens automáticas dos serviços públicos, nem imagens e videos constantemente felizes, de realidades distantes, de casas ricas ou imagens do excelente profissional, cheio de trabalho e super requisitado, cheio de competências, nem de corridas competitivas, nem de prazos de candidaturas que cada vez mais requerem uma equipa cada vez maior e mais especializada em números, em economia, marketing e direito.

Quero mais humano.

Mais afetos.

Mais empatia, compreensão amor, respeito, dádiva, 

mais utopia.

Mais liberdade para sonhar, sem ser invadida de pensamentos e listas de deveres e obrigações infindáveis para cumprir, que nunca mais acabam e que tendem a aumentar.

Isto é mesmo para acabar com qualquer ser humano, este sistema cada vez mais máquina, mecânico, robótico, "algoritmico", numérico, mais rápido, competitivo, indiferente, especialista e destrutivo, exploratório de todas as mensagens de amor e arredores.

Quero ler todos os livros da minha biblioteca e outros tantos. Ter tempo interno e disponibilidade sem o pensamento policia, inspector.

Não consigo fazê-lo, não tenho tempo.

Quero amar e cuidar da minha filha de oito meses, mas tenho a cabeça ocupada, preenchida com as contas que tenho para pagar ao final do mês e o trabalho precário e profissional que nunca mais chega mas que se espera que apareça, pois não havendo nada é melhor que nada. Corro em todas as direções à procura de trabalho, a todas as audições, todos os open calls, até anúncios de aprendizes de tapeçaria respondi e todos respondem Não. Cada vez mais nãos.

E o tempo a passar e a idade. E tenho tanto ainda para dar.

Mas nada aparece. Há menos sinais de conjunturas favoráveis.

As emoções correm dentro, vontade de chorar mas não choro. Quero manter-me forte.

45 anos, talvez seja da idade.

A sociedade que não dá espaço nem valoriza o envelhecimento e os conhecimentos que advêm desse processo natural, o envelhecimento.

As rugas não são bem vistas.

Não me quero queixar, nem vitimizar, mas é preciso vomitar, pôr para fora, não aguento mais reter tanta coisa.

Tenho de deixar sair aos bocadinhos, pois fica pouco espaço.

Imagino, o que é sentir-me amada. Sentirmo-nos amados verdadeiramente, plenamente. Deve ser tão bom. 

O amor liberta. Parece conversa fora de moda e parece banal, canções sem estilo, para fracos. A cantilena, que parece já não existir paciência para escutar. Mas ser amado protege, dá-nos liberdade, força.

Sinto-me como aquele cão que vi na IC19 há uns anos atrás, queria fugir dos carros e não conseguia. Não sei se sobreviveu, não consegui parar e ainda hoje quando passo no mesmo sitio, naquela estrada, lembro-me dos seus olhos, parado, a cambalear. Será que podia ter feito alguma coisa, parar todos os carros que corriam, que parassem? Rezei, pedi a tudo, que o salvassem, enquanto me escorriam as lágrimas pelo rosto sem parar. Nunca mais consegui apagar essa imagem dentro de mim.

E tenho mesmo muitas imagens de outros tantos momentos de outras histórias. 


Texto: Clara Sofia

Imagem: Amuada, pintura de Rodolfo Amoedo, 1882 (Museu Nacional de Belas Artes)





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