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Alexandre O'Neil

"O poeta está
só, completamente só.
Do nariz vai tirando alguns minutos
De abstracção, alguns minutos
Do nariz para o chão
Ou colados sob o tampo da mesa
Onde o poeta é todo cotovelos
E espera um minuto que seja de beleza.
Mas o poeta
é aos novelos;
Mas o poeta já não tem a certeza
De segurar a musa, aquela
Que tantas vezes arrastou pelos cabelos...

A mosca Albertina,
que ele domesticava.
Vem agora ao papel, como um insecto-insulto,
Mas fingindo que o poeta a esperava...
Quase mulher
e muito mosca,
Albertina quer o poeta para si,
Quer sem versos o poeta.
Por isso fica, mosca-mulher, por ali...

-Albertina!, deixa-me
em paz, consente
Que eu falhe neste papel tão branco e insolente
Onde belo e ausente um verso eu sei que está!
-Albertina!, eu
quero um verso que não há!...

Conjugal, provocante, moreno
e azulado,
O insecto levanta, revoluteia, desce
E, em lugar do verso que não aparece,
No papel se demora com um insulto alado.
E o poeta
sai de chofre, por uns tempos desalmado..."


Albertina ou O insecto-insulto ou O quotidiano recebido como mosca de Alexandre O'Neil (1924-1986, Lisboa)

Comentários

Quimera disse…
Excelente post!
Novas inspirações... obrigada! :)

beijinho

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