1 história por dia #3 ou Amantes


Assim que ela entrou no café, foi assaltada por uma imagem, que vinha de uma das mesas, dois corpos entrelaçados, num fogo lento de amor e beijos silenciosos, como se estivessem escondidos um no outro, não dando para perceber bem onde começava um e terminava o outro.
Este quadro destoava totalmente do ambiente daquele café, como se não fizesse parte daquele conto, talvez porque não estejamos habituados a ter visões destas a cada esquina de rua por onde passamos. Mas ali estavam eles, homem e mulher em ilha prazerosa.
Não se detendo com esta visão fugitiva, a rapariga continuou o seu percurso e propósito, sem se aperceber o quanto aquela visão se tinha instalado e ocupado algum lugar numa qualquer parte dentro de si.
A rapariga dirigiu-se ao balcão, pediu o café do costume, e enquanto esperava, a mesma imagem, iluminou-se de surpresa, como se quisesse entrar, como se precisasse que alguém olhasse para ela.
Uma curiosidade nascia fazendo-lhe alguma comichão. Quem eram os forasteiros? De onde vinham? Porque estariam eles naquele lugar, àquelas horas da manhã.
Enquanto divagava em suposições, pegou no café e foi-se sentar.
Olhou novamente de relance e lá estavam eles naquele silêncio secreto, amoroso.
O casaco dele metido ao acaso e à pressa por cima da mesa, a mala dela, um saco por cima, o casaco dela desarrumado pela cadeira, e ali estavam num prolongado abraço.
Não tinha trazido o seu diário, coisa rara, mas tinha trazido uma caneta, pediu à empregada se podia tirar uma toalha de papel, daquelas que se põem na mesa às refeições e começou a escrever.
Num certo momento o casal levantou-se, e pela forma como estavam vestidos não seriam daquela cidade, mas de uma outra longe dali, de pelo menos uns 300km de distância, casacos quentes de fazenda, côres de terra, verdes escuros, lãs, algumas malas, alguns sacos, pareciam vir do frio, do norte, de uma daquelas cidades perto da montanha.
A história revelava-se aos poucos, à medida que a rapariga os olhava sem fazer barulho, ele saiu primeiro e ficou à espera dela à entrada, ela com calma vestiu o casaco grosso de fazenda comprido, que lhe cobria o vestido verde de lã, enquanto ele esperava por ela com a plenitude no rosto, e uma alegria comedida como se tivesse descoberto algo precioso, mas que ao mesmo tempo tivesse de esconder aquele amor vivido em segredo.
O telefone dela tocou, de sacos na mão, mala, casaco de fazenda grosso vestido, tentou encontrar o telemóvel, ficou parada por uns momentos a falar ao telefone, com um sorriso discreto.
Ela era casada, ele não. Eram amantes, encontravam-se poucas vezes, e deste vez tinham marcado encontro num café muito longe da cidade de onde vivem, não suportavam as saudades. Encontraram-se muito cedo, pois ainda iriam voltar, cada um às suas casas e vidas comprometidas.
Mas quando se vêem não importa onde estejam, ele atira o casaco para cima da mesa, de qualquer maneira, abraça-a de urgência e beijam-se sem acabar.

Texto: Clara Marchana
Imagem: Amantes de Eva Sanz

Comentários

Quimera disse…
Belíssimo!
Também gostei muito da imagem.
Esta história evocou-me aquela fotografia clássica do "Beijo do Hotel de Ville" de Doisneau...
:*
Lisa disse…
cinematográfico... inquietante.

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